quinta-feira, 20 de junho de 2013

NÃO SÃO CEM MIL VÂNDALOS

Por Gabriel Oliveira

A vontade de escrever às vezes esbarra na infinidade de assuntos, questões e dúvidas que as últimas mobilizações no país tem trazido à tona. São tantas visões e tantos argumentos que ainda é impossível fazer uma análise completa sobre o movimento que tem levados milhares de pessoas às ruas em dezenas de cidades brasileiras.

Com a revogação do aumento do aumento em São Paulo, no Rio de Janeiro e mais algumas cidades, a discussão que provavelmente se estabelecerá agora é como e porque manter o estado de mobilização no Brasil a fim de garantir novas conquistas. O grito de “não é por 20 vinte centavos” ecoou durante todos esses dias, e é evidente a busca do movimento por novas pautas e bandeiras.

Não sei exatamente onde dará essa discussão e em que medida as mobilizações permanecerão em alta, mas também não é sobre isso que gostaria de tratar nesse pequena reflexão.

Uma das questões mais me inquietou em todos esses dias tem sido outra: porque essa vacilação de setores da esquerda em aderir às manifestações?

Desde que os protestos começaram, uma parcela da esquerda no país faz um esforço inexplicável por condenar e desqualificar as manifestações.

Fazem isso de várias formas: ora dando ênfase às cenas de violência praticada por manifestantes, ora fazendo a defesa dos avanços conquistados em governos do PT, outras vezes chamando a atenção para o fato de que a direita tenta se apropriar do movimento.

Nada disso é inverdade, tudo isso realmente tem acontecido.

A própria imprensa, como vimos, deu um giro de 180 graus em seus editoriais da noite para o dia.

Talvez porque perceberam que não conseguiriam evitar que as redes sociais e a blogosfera fossem fundamentais ao apresentar uma contra-versão ao noticiário oficial, quase sempre motivado pela conhecida tendência de nossa mídia de criminalizar os movimentos.

Talvez porque o nobre sentimento de news corporation não tenha aguentado ver seus funcionários sangrando e de olhos inchados, violentados pela polícia tal qual um reles jovem-manifestante, que ainda no dia anterior era chamado de "vândalo".

Talvez ainda porque, assim como parte da direita e das forças conservadores no Brasil, o PIG percebeu no clima de mobilização uma oportunidade ímpar de irradiar o sentimento anti-petista na sociedade, tornando possível que a estúpida pauta de impeachment de Dilma chegasse a ser algo relevante nas manifestações.

Contudo, confesso que tenho dificuldade em entender o que leva uma pessoa ou organização política de esquerda a questionar uma mobilização de massas que tem origem numa pauta absolutamente justa e inquestionável, como é a luta pela qualidade do transporte público nas cidades.

O dia que esse texto coincide com o lançamento de uma nota do PT, deveras atrasada, em defesa das mobilizações. Mas ainda assim, não se trata de nota ou de declarações. Se trata de nossa vacilação na prática, que vai desde a dúvida de nos somarmos ou não aos protestos até ataques sistemáticos, sobretudo pela internet, de uma parte de nossa militância.

É evidente que as manifestações já não se resumem simplesmente à redução de tarifas de ônibus em São Paulo ou em outras capitais. O estado de mobilização pelo qual o Brasil passa já é diverso o suficiente para que numa mesma passeata possa caber um militante do Movimento Passe Livre e um playboy malhadinho transtornado por seu país ser presidido por uma mulher-terrorista, ou por um analfabeto-quatro-dedos-nordestino.

Mas desde quando isso é motivo para não estarmos na rua?

Em primeiro lugar, nunca deveríamos ter saído dela. E precisamos admitir que muitos de nós saímos. É preciso admitir que vários setores da esquerda brasileira, desde que Lula assumiu a presidência, opera deliberadamente pela desmobilização. Seja porque se entregou completamente ao establishment da política brasileira, seja porque acredita sinceramente que qualquer mobilização popular só pode jogar contra nossos governos.

Particularmente, nunca acreditei nessa tese.

Não acho que o grande motivo que explica a criação e a importância do PT hoje no Brasil, a mobilização popular, possa em qualquer momento jogar contra nós próprios. A não ser que o sentido de nossa existência não seja mais o mesmo. E essa também é outra tese em que eu não acredito.

Em segundo lugar, não estou entre aqueles que lamentam o fato de uma mobilização de massas acontecer "justamente" em nosso governo.

Ora, não somos nós que acreditamos que o governo precisa encontrar na mobilização popular seu principal aliado?

Somos nós que acreditamos que não é possível qualquer governo mudar de fato a realidade brasileira tendo como aliados de primeira linha ruralistas, fundamentalistas, empresários e donos de mídia.

Somos nós que acreditamos que não há justiça social se não houver reforma agrária, se não houver democratização dos meios de comunicação, se não houver igualdades de direitos para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, mulheres, negros, índios.

Somos nós que acreditamos que não há justiça social enquanto as cidades brasileiras forem o playground de empresários de transporte e de agentes da especulação imobiliária.

Então, por que não a rua?

Passamos anos justificando a governabilidade sob o verdadeiro argumento de que para enfrentar tais interesses seria preciso, no mínimo, amplo apoio popular e muita gente na rua em defesa de nosso projeto.

Diz-se que as manifestações não estão do nosso lado, mas a pergunta pode ser outra: nós estamos do lado deles? Não do lado do “playboy malhadinho” que ajudou a quebrar a prefeitura, mas do lado daqueles que transbordam as ruas em defesa da cidade digna.

Porque não estamos lá? Porque não estivemos lá desde o início? Porque não estamos lá defendendo tudo o que nossos governos fizeram e tudo que ainda precisam fazer?
Então, não lamento. Ao contrário: comemoro.

Comemoro por um simples motivo: se eu acredito que é preciso mudar o Brasil, mais do que ele já mudou; se eu acredito que nosso governo é capaz de operar essas mudanças; se eu acredito que só é possível chegar às transformações necessárias junto com a mobilização popular, então eu não lamento. Que bom que é justamente em nosso governo que o povo está na rua. É com ele na rua que devemos aprender a governar.

Alguns diriam: "não é o povo que está na rua, é a classe média". Mas sabemos que isso não passa de um sofisma barato. Não é razoável simplesmente desqualificar uma mobilização dessa magnitude por ser supostamente composta por pessoas não-pobres, ou não-trabalhadoras.

Cem mil pessoas em um ato político, é claro que é o povo. Como era o povo no Fora Collor, como era o povo nas Diretas Já, como era o povo nas mobilizações contra a ditadura civil-militar.

Se os conservadores se mobilizam em muitos, como já fizeram durante a ditadura ou como tem feito nos últimos anos com os fundamentalistas cristãos, esse então é mais um motivo para disputarmos com eles o país que queremos. Mas disputarmos na rua, e não no gabinete.

É compreensível que talvez ainda não tenhamos entendido o fato de que há uma geração inteira no Brasil que ainda não foi às ruas. É compreensível que ainda estejamos atordoados com o fato de que talvez esta seja a primeira grande mobilização de massas nos últimos 30 anos que o PT não compõe ou não dirige.

Mas se o movimento é disputado pela direita é porque nós vacilamos. Faltou-nos coragem de apostar em nossa capacidade de mobilização. Ficamos em casa, atrás dos computadores, enquanto o feioso do Arnaldo Jabor cinicamente assumia seu "erro".

Aliás, é frustrante ver companheiros de esquerda como o blogueiro Eduardo Guimarães cumprir o papel de desagregar a luta, a todo tempo questionando o movimento, quando o que precisamos é exatamente o contrário: se a direita põe milhares na rua, então precisamos dobrar o número. Simples assim.

Afinal de contas, essa sim é uma tese em que eu acredito piamente: se nem com milhares de pessoas mobilizadas nosso governo será capaz de sair da letargia política e romper com as forças conservadoras que inviabilizam um Brasil realmente justo, então não faz sentido para nós governar.

Não podem ser 100 mil vândalos em São Paulo. Não podem ser 100 mil pessoas de "classe média" no Rio. Não são 30 mil pessoas "de direita" em BH. Não foram 50 mil “playboys malhadinhos” em Fortaleza. Não serão 30 mil "jovens inconsequentes" em Salvador.

É o povo que está na rua. É lá que devemos estar.

Gabriel Oliveira
Militante do Partido dos Trabalhadores